Sem início ou O mesmo e a febre
... e é por isso que sentiu cansaço, por isso sentiu sono, por isso quis dormir e por isso não conseguiu pregar os olhos. No dia seguinte, tinha saído do cansativo dia de trabalho - onde, por mais que se tentasse fazer diferente, falava-se sempre a mesma coisa - com raiva de ter escutado todas as palavras que haviam lhe dito: eram todas iguais. Não importa com que letras, não importa com quantas letras, não importa qual a posição das letras: as palavras eram todas iguais. Sentiu nojo delas, principalmente porque tentavam ser bonitas - o nojo aumentou. Andou até o ponto de ônibus de cabeça baixa, mas a levantava quando reparava nisso. A cabeça insistia em cair. Seu corpo estava quente e disposto (o cansaço pesado que sentia era o das palavras repetidas - o outro cansaço era normal). Entrou no ônibus e viu pessoas bonitas, bonitas mesmo, como aquelas que precisam aparecer no campo de visão depois do expediente para reativar o ato de respirar. Sorriu e até pensou que poderia conseguir um carinho daquela beleza encontrada no ônibus. Sentou e sentiu que a cabeça já firmava sozinha. E sentia o corpo quente. Estranhou o estado febril e pensou que o trabalho estava lhe causando doença: não era só o fato de as pessoas repetirem as palavras - mesmo que diferentes - que irritava, mas o fato de o movimento da boca ser sempre o mesmo, de o gesto que acompanhava a boca e o som da palavra ser sempre o mesmo, de os ouvintes fazerem sempre a mesma expressão. Sabia o nome da sua doença: repetição crônica. O problema era que quem repetia eram os outros. Estava com febre, sem nenhum mal-estar e sabia o nome da doença que tinha sido causada pela repetição dos outros. Será que seu corpo repetia as sensações? Se assim fosse, realmente estaria doente, estaria repetindo. O ônibus avançava e as coisas que sabia que iriam se repetir não se repetiram. A febre estava já causando delírios? Chegou em casa e teve certeza de que o delírio havia passado: lá, as pessoas continuavam a repetir. Quis cortar as orelhas para não escutar, como, segundo Artaud, talvez Van Gogh o tenha feito, e quis arrancar os próprios olhos também - não queria deixar de ver, mas deixar de ver aquilo. Tomou banho e a água estava mais fria que de costume: estava febril. Fechou os oulhos e se sentiu como que pendurado numa corda. Não conseguia encostar o pé no chão pormais que o esticasse. Deixou-se ficar ali, na corda, quando percebeu que estava gostando de sentir que fazia força no braço para se manter naquela posição torta - estava gostando de ficar torto. (Pelo menos isso era diferente - normalmente, as pessoas querem a postura correta.) A febre estava ajudando pois já queria dormir. Secou-se e olhou para o espelho: a febre queria irromper de vez e o elírio mostrava que a corda começava a abraçar seu corpo. Conseguiu o carinho, portanto, mas sentiu uma certa sufocação. Prestou atenção no seus rosto e percebeu uma lágrima: a febre era vida, que não cansava e insistia: não queria mais repetir. Comeu alguma coisa e foi para a cama, que estava de braços abertos. Ficou pensando na febre e no mesmo e é por isso que sentiu cansaço, por isso sentiu sono, por isso quis dormir e por isso não conseguiu pregar os olhos.
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