quarta-feira, março 29, 2006

Toque...

Num salão de beleza, a profissional tinha pudores que não condiziam com o seu trabalho: "Gosto muito de cortar cabelo de mulher, mas de homem é mais difícil". A dificuldade ficou estampada no reflexo do espelho; a testa da moça parecia indicar um cuidado, o evento exigia uma atenção. A tesoura passeava tímida. O corte se construía não tão facilmente para ela - ele, atento, percebeu.... O toque da tesoura no cabelo de seu freguês era o máximo que ela conseguia executar. Mas o que estava faltando? Havia um toque que não acontecia... De tão gritante a situação, parecia ser daqueles toques entre amantes.
O incômodo de não saber qual era o toque que não cessava de não acontecer seduzia. Não era só a moça a ficar tensa; tenso era também o olhar do freguês, agora investigando mais detidamente. O momento propício para que se acontecesse surgiu, mas o toque esbravejou ao não ser dado... Tanto foi que entreolharam-se, os dois, pelo espelho. O rosto dela pediu permissão quase se desviando. O sublime toque se presentificava pela sua não-ocorrência:
A orelha era o motivo do receio daquela cabelereira: talvez esse toque fosse muita intimidade para um primeiro corte....

domingo, março 19, 2006

Docilização





Docilizada a energia corre pelos cabos. Circulando quilômetros por segundo, queimando qualquer obstáculo que não seja um condutor. Potente. Perigosa. Energia. Contida, limitada, na forma do cabo de metal.

Docilizada a água corre em canos. Dos caminhos insertos ela passa a linha retas. Curvas planejadas, volume controlado. Limpa das impurezas a água que desafiava até mesmo a gravidade se torna conteúdo. Conteúdo e não mais contenção.

Docilizados os animais são vendidos em pet shops.

Docilizada a árvore, as florestas.

Docilizada pedra.

Docilizado o negro africano, os índios sul americanos. Todos os povos “não civilizados” livres do instinto natural, selvagem.

Docilizado os marxistas, contidos os Luther-King’s. Apaziguados os Ches. Protegido o povo do Iraque.

“gás de pimenta para temperar a ordem” (NZ)

E tudo segue como deve. Todo dia. Todo dia. Segunda, Terça, Quarta, Quinta, Sexta, Sábado e Domingo. Acorda, come, trabalha, assiste, consome, estuda, rala, tenta, trabalha, sobrevive, insiste, , , , , até que um dia morre.

Tudo segue em paz. Civilizado. Docilizado. Sobre cabos de tensão, canos de concreto ou PVC, no sentido das ruas, das calçadas, no sobe e desce dos elevadores.
Até que fogo, trovão, tempestade, vulcão, levante, os mitos e o mais importante: o sonho.
Não se dociliza o sonhar... embora ainda se tente.


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sexta-feira, março 17, 2006

Mulheres....


"Terminei com a minha mulher pois ela não podia me ajudar com a minha mente"... Após algum tempo o samba mudou sua letra... "Toda meia-noite eu sonho com você. Se você duvidar, posso até sonhar pra você ver"... Oh, morena, minha morena...
PS.: Esses dias comentei com o Guilherme o tanto de música que tem "morena" na letra... Ah, as citações são de "Paranoid", do Black Sabbath, e "Quando eu era um sem ninguém", do Tom Zé.

sexta-feira, março 10, 2006

Preso na Existência















...”este corpo de lama que tu vê
é apenas a imagem que sou”...


Um trecho de um poema de Manoel de Barros me tirou da rotina:

“Vi uma lesma pregada mais na existência que na pedra.” – O Fotógrafo

Bem, verdade é que destas palavras me perdi em alguns questionamentos e em algumas idéias.
Caí numa pergunta muito clichê e digna de risos: “quem diabos sou eu?” – como disse antes, reafirmo, clichê e ridícula – mas continuando... e completando o trabalho sináptico, a resposta que procuro não é Sérgio, 26 anos, arquiteto, solteiro, leonino, neurótico obsessivo, etc e tal não é a que procuro. Existe algo ainda mais incrustado do que um nome, uma idade, uma profissão. Não sei bem o quê... e me poupem da resposta “alma”... além de muito brega, alma não é a resposta, e talvez seja até o problema em si.
Algum tempo atrás vi um filme japonês antigo, em PB, da década de 60 –pleno toyotismo rolando- que tratava da história de samurais no Japão pós-feudal, onde os dogmas desta classe de guerreiros entrava em colapso com a nova realidade política e econômica que ali se estabelecia. Ética e percepção são os temas principais deste filme (cujo nome prometo procurar e publicar aqui pra quem interessar possa). “Antes de ser um samurai, sou um homem” - brada o protagonista em determinado momento, eis o “Ó” do borogodó.
Existe algo que ainda vai além do gênero, masculino/feminino. Alguém ai já se apaixonou tão perdidamente a ponto de ir além da diferença(ou não)/atração dos sexos e amar algo indefinido? Amar o gesto, a expressão do corpo, o modo de pensar... estar feliz ao lado de alguém não pela parte biológica – e cuja importância não diminuo – mas por sentir que preso na existência se está acompanhado.
Não pretendo reduzir o pensamento a uma questão de relacionamento com Outro, e nem se deve. Continuo no Eu, que não se encontra no Outro , apesar do que diz a letra de Paquetá do “Amar”ante: “Mas ei, só me acho em ti”.
Sou o que então? O que é pregado na existência? E, o que nos prega na existência? – Seria a falta de sentido da vida, nos levando a um Nada onde só há o simples existir?
Não sei as respostas e duvido que algum dia saiba. Vou, então, mais uma vez, usar o samba, me armo de música e assim me despeço.

O Mistério do Samba
Mundo Livre S/A

O samba não é carioca/O samba não é baiano/O samba não é do terreiro/O samba não é africano/O samba não é da colina/O samba não é do salão/O samba não é da avenida/O samba não é carnaval/O samba não é da tv/O samba não é do quintal
Como reza toda tradição
É tudo uma grande invenção...
O samba não é emergente/O samba não é da escola/O samba não é fantasia/O samba não é racional/O samba não é da cerveja/O samba não é da mulata/O samba não é playboy/O samba não é liberal
Como reza toda tradição
É tudo uma grande invenção...
Não tem mistério
Não é do bicheiro/Não é do malandro/Não é canarinho/Não e verde e rosa/Não é aquarela/Não é bossa nova/Não é silicone/Não é malhação/O samba não é do Gugu/O samba não é Faustão/Não é do Gugu/Não é do Faustão
Sem mistério...
Ps: estou com medo de começar “o Ser e o Nada”

terça-feira, março 07, 2006

Inversões


Por um instante, a mão que toca se torna nariz, olho e boca... Ela não se incomoda em inverter funções... Seus atributos se enriquecem com o além-do-tocar... com o além da palavra... com os segredos... com as intensidades... com o acaso... com o que está por vir... com o que ainda não foi navegado...

quinta-feira, março 02, 2006

A mão que afaga é a mesma que...

Sessão de cinema, e o espírito que ronda é contente. Não são muitos os espectadores na sala. Com o início do filme, inicia-se também algo tão perturbador que as cadeiras parecem chacoalhar todos os presentes, mas não... só ela percebe isso - sem ainda perceber essa sua solidão. A tela mostra o que todos vêem, mas só ela vê aquilo como perturbação... Seria alguma cena? Se fosse, qual seria? A do assassinato ou a da revelação da paixão? A fumaça de pólvora que sai da arma apontada ou a inclinação para o beijo? Há muitas variáveis, claro... Há muitas cenas que andam junto e insistentemente grudadas com lembranças e desejos. A comoção pode até não ser fruto desse filme, mas do filme-dela. Não cabendo na cadeira, levanta-se dando a entender que iria ao banheiro. Voltaria logo.
Demorou e demorou... - agora que mostrou-se-lhe a solidão, quis assitir ao filme num choro tímido e esperando alguém que pudesse trocar a mão em que apoiava o próprio rosto: queria outra e não era qualquer mão.